
Artur Semedo - artur.semedo@publiracing.pt
1 de out.



Artur Semedo - artur.semedo@publiracing.pt
15 de set.


Em minha rotina semanal, são centenas de quilómetros ao volante, testando carros em diferentes cenários e estradas do país, mas há uma imagem que se repete com inquietante frequência: um mar de camiões a dominar as vias portuguesas. Em cada viagem, cruzo-me com dezenas deles, e não raras vezes observo comportamentos que, francamente, deveriam preocupar-nos a todos.
Falo de veículos pesados a circular muito acima do limite de velocidade permitido, de camiões que se colam perigosamente à traseira de automóveis de passageiros — muitas vezes em zonas de tráfego intenso — e de ultrapassagens arriscadas em vias onde cada metro conta. É um cenário que se repete em autoestradas, estradas nacionais e até em acessos urbanos, transformando aquilo que deveria ser um fluxo organizado de transporte em um risco constante à segurança rodoviária.
O problema não está apenas no desconforto que estes comportamentos provocam nos restantes condutores, mas sobretudo no perigo real que representam. Uma travagem de emergência a alta velocidade, com dezenas de toneladas em movimento e a escassos metros do veículo da frente, é receita certa para tragédias — e infelizmente os números confirmam essa realidade.
Acidentes envolvendo veículos pesados continuam a representar uma fatia significativa dos sinistros graves e fatais em Portugal, com custos humanos e económicos elevadíssimos.
Além do impacto direto na segurança, há também o peso que esta realidade coloca sobre o sistema de saúde, os seguros e as infraestruturas. Cada colisão, cada despiste, cada acidente com vítimas implica recursos, tempo e investimento público — tudo isto agravado por uma dependência excessiva do transporte rodoviário que, por si só, já gera congestionamentos, desgaste de estradas e aumento de emissões.
É com esta experiência repetida, semana após semana, que me pergunto se não estaremos a seguir um caminho insustentável. Será que faz sentido manter tamanha concentração de carga sobre rodas quando existem alternativas mais seguras, mais limpas e mais eficientes? É aí que a reflexão sobre a ferrovia como solução estratégica, não só em termos logísticos, como ambientais, ou ainda, como economia e bem estar para a sociedade.
Ao mesmo tempo que observo este vai e vem de camiões, quase não vejo comboios de mercadorias. É um contraste que me inquieta: se queremos descarbonizar a sério e ganhar competitividade, porque continua a estrada a carregar (quase) tudo e a ferrovia tão pouco?
Não é só impressão. Nas ligações transfronteiriças Portugal–Espanha, a quota ferroviária na carga mal chega aos 3% (dados de 2022), enquanto a rodovia fica com 86% — um desequilíbrio gritante num corredor onde a ferrovia podia ser dominante em longas distâncias.
Quando olho para o impacto climático, as contas são diretas: o comboio emite, uma fração do CO₂ por tonelada-km face ao camião. Várias fontes técnicas apontam ordens de grandeza de ~17 g CO₂/t-km na ferrovia contra ~47 g CO₂/t-km na rodovia. Mesmo com variações metodológicas, o sentido é inequívoco: mover carga por carris é muito mais limpo.
Portugal está a investir — e bem — em projetos que encurtam tempos e aumentam capacidade no transporte de carga por ferrovia, como na Linha de Sines (troço Sines–Ermidas do Sado), desenhada para comboios de até 750 m, com objetivos explícitos de reduzir custos operacionais e emissões, e reforçar ligações à Europa. É exatamente isto que o setor precisa para mudar o modal.
Ao mesmo tempo, há um movimento estratégico: portos mais fortes, ferrovia mais forte. O país anunciou €4 mil milhões para modernizar seis portos até 2035, com grande foco em Sines e metas ambiciosas de +50% de carga total e +70% em contentores. Portos com “spurs” ferroviários rápidos e interoperáveis empurram mercadoria para os carris; sem isso, ficamos reféns do camião porta-a-porta.
No plano europeu, o Atlantic Corridor (TEN-T) trabalha há anos para harmonizar regras, pontualidade e interoperabilidade dos comboios de mercadorias ibéricos com França e além. A ambição é correta: integrar Sines, Lisboa e Leixões numa espinha dorsal ferroviária competitiva para a Europa.
Apesar do investimento, o ganho “no terreno” ainda é tímido. Há secções modernizadas cujo benefício tangível em tempos de viagem e fiabilidade tarda em aparecer; operadores e carregadores continuam a preferir o camião pela previsibilidade porta-a-porta. É duro dizê-lo, mas precisamos de projetos que se traduzam em minutos ganhos, comboios adicionais e maiores, não apenas em placas inaugurais.
Também falta escala operacional: comboios longos e pesados exigem pátios preparados, cruzamentos mais compridos, sinalização moderna e janelas de capacidade coordenadas à escala ibérica. Sem isto, a ferrovia continua a ser boa… no PowerPoint.
Prioridade absoluta aos corredores de mercadorias (Sines–Badajoz/Évora, Leixões–Vigo, Lisboa–Guarda/Salamanca) com metas mensuráveis: +X comboios/dia, +Y% de quota até 2030.
Intermodalidade a sério: terminais secos bem localizados, slots garantidos, e contratos logísticos “rodovia+ferrovia” simples para o cliente.
Preço e sinalização ambiental: internalizar custos de carbono e congestionamento — quando a ferrovia polui muito menos por t-km, tem de ser fiscalmente favorecida.
Portos como alavanca: cada euro novo nos portos deve vir com condição ferroviária (vias, pátios, automatização), ou arriscamos crescer… para a estrada.
Se queremos competitividade e neutralidade carbónica, não há futuro sem mercadorias na ferrovia. O camião continuará a ser essencial nesta rede logística, mas para distâncias bem menores. Já o comboio tem de dominar as longas distâncias. É aqui que Portugal joga a sua vantagem atlântica: portos profundos + corredores ferroviários eficientes = menos emissões, menos camiões por quilómetro, mais valor acrescentado.
Agora, a pergunta para si, leitor e empresário: o que ainda o faz escolher camião quando sua carga podia estar nos carris? Falta de horários? Preço? Confiabilidade? Operação difícil?
Partilhe a sua experiência — transportadores, operadores, autarquias e governos: o debate tem de sair da gaveta e entrar na linha, literalmente.
Artur Semedo / Editor de Veículos e Mobilidade
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Difícil encontrar um jornalista com uma visão (e opinião) tão correta da realidade. Parabéns